Por Silvia Camurça*
A presidenta Dilma tem afirmado como orientação estratégica de seu governo o combate à pobreza e à erradicação da miséria. Muito bom, muito melhor do que se fosse o crescimento do PIB. Mas, longe de ser transparente, esta afirmação ainda guarda enormes ambiguidades, podendo significar toda sorte de medidas: desde o controle do número do nascimento dos pobres, para os que defendem a doutrina malthusiana (e ainda há quem defenda), até a profusão de cursos profissionalizantes, para aqueles que pensam, ingênua ou cinicamente, que a pobreza é causada pela falta de estudo.
A pobreza, como sabemos, não é um câncer, nem um mosquito ou erva daninha, que pode ser extirpado num grande mutirão, reunindo todo mundo. Não, a pobreza é uma situação, uma condição de vida, imposta para milhões de pessoas pela força das relações de exploração sobre o trabalho, mas também pela política econômica, pela regulamentação tributária, pela política de ocupação das terras, rios, mares e praias, pela concessão de benefícios fiscais, pelos projetos de desenvolvimento, enfim, por muitas variáveis reguladas pelo Estado e gerenciadas pelos governos, e que produzem e reproduzem acumulação das riquezas nas mãos de uns, em detrimento da maioria, e favorecem o capital.
Como é sabido, no capitalismo, o combate à pobreza, exige medidas como controle de capitais, impostos maiores para os mais ricos, taxação de grandes fortunas, de heranças, e sobre lucros. Todas estas são formas, conhecidas, testadas e aprovadas, para retirar um pouco dos que têm mais e re-distribuir para os que não têm nada – na forma de serviços públicos ou de assistência social, transferência de renda, seguro desemprego e outros meios. Mas disso, tenho certeza, Dilma entende. E sabemos, que essas políticas dependem da correlação de força no Congresso, na mídia, e no próprio governo.
Contudo, na perspectiva feminista, esta diretriz do Governo pode conter ainda mais ambiguidades. Foi sobre as mulheres que se fez o controle de natalidade em nome de combate à pobreza, nos anos 1970. Mas esse tempo não acabou. Nos primeiros meses do primeiro governo Lula, o tema voltou à baila com uma proposta, felizmente derrotada dentro do próprio governo, de associar o Bolsa Família ao uso de método contraceptivo.
Saímos em grita, muitas de nós – a Articulação de Mulheres Brasileiras uma delas -, com o manifesto “A pobreza não nasce da barriga das mulheres”. Não penso que este risco estaria colocado agora. Mas começo de governo é sempre tempo de disputa de rumos para as políticas públicas. E cada ministério terá de interpretar esta diretriz para seu mandato, o que abre margem a muitas propostas.
A pobreza é maior entre as mulheres. Recebemos menos que os homens no mercado de trabalho, somos a maioria em contratos precários de trabalho. E nas muitas ocupações informais, somos as que recebem os menores valores de benefícios previdenciários. Mas, temos certeza, não será apenas com o Bolsa Família que iremos superar esta situação.
A mais perfeita tradução para uma estratégia de combate à pobreza entre as mulheres são políticas promotoras da autonomia. Isto quer dizer política de aumento continuado do salário mínimo; investimentos em equipamentos para reduzir o impacto da divisão sexual do trabalho, que sobrecarrega as mulheres; garantias do acesso à terra e a meios de produção, moradia e trabalho, e, acima de tudo, muitas creches, boas e em grande quantidade, nas cidades, no campo e na floresta – um desafio em tempos de cortes no orçamento.
Contudo, no governo Dilma, o maior desafio para garantir políticas promotoras de autonomia para as mulheres será, sem dúvida, enfrentar os religiosos conservadores. Estes estão à espreita desde o final da campanha eleitoral e rearticulados faz tempo. Estão se apropriando dos fundos públicos por meio da gestão dos orçamentos de serviços de educação e de saúde, por todo o país.
São as famigeradas fundações sociais, muitas das quais, sob controle de grupos com orientação religiosa fundamentalista, que tentam implementar suas próprias diretrizes na orientação dos serviços. E aí, o foco não terá nada a ver com autonomia das mulheres, mas com a conhecida associação materno-infantil, orientação política que percebe as mulheres apenas na sua condição de mãe, situação que não é, nem durante toda a vida, de todas as mulheres.
(*) Silvia Camurça é socióloga, educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para Democracia e integra a coordenação nacional da Articulação de Mulheres Brasileiras.
**Matéria publicada originalmente na Rede Brasil Atual
Texto retirado do site: Carta Capital