segunda-feira, 4 de julho de 2011

O direito à livre expressão homoerótica

Pedro Estevam Serrano
Notícia veiculada pela mídia na semana que passou informa a ocorrência do primeiro casamento gay no país. Nada que surpreenda. Consequência natural da interpretação dada pelo STF ao parágrafo 3º do art. 226 de nossa Constituição.
Aliás, diga-se de passagem, de estranhar manifestação crítica de alguns juristas conservadores, amplamente divulgada pela mídia, compreendendo que teria o STF transbordado de suas funções, invadindo no tema seara do Legislativo, inclusive trazendo entendimentos de doutrina e julgados estrangeiros, que dizem respeito a Constituições de outros países, não à nossa.


Se não for papel do STF interpretar a extensão e o sentido de um dispositivo constitucional específico, como é o caso, qual seria sua atribuição? Nossa Constituição resolveu tratar do tema diretamente, por normas próprias, ao contrário de outros países, que tratam do tema em âmbito infra-constitucional.
Ao estipular norma constitucional regulando a matéria, nosso sistema constitucional atribui ao STF a competência para interpretar tal norma, inclusive sua extensão. É algo propedêutico, óbvio em termos estritamente jurídicos. Nada houve de juridicamente inadequado na interpretação de nossa Corte Suprema.
No âmbito social e político, creio que tais decisões jurídicas são conquistas de um âmbito maior de luta contra a discriminação: o da livre expressão homoerótica.
No que percebo em meu cotidiano de classe média, o preconceito autoritário contra o homoerotismo vem sendo aos poucos emparedado por sua absoluta incompatibilidade com a vida numa sociedade livre e complexa.
Isso se observa no conteúdo discursivo da homofobia, onde quer que ele se produza, das mesas de almoço familiar de domingo aos discursos parlamentares, como os do deputado Bolsonaro ou da deputada Myriam Rios. Atualmente, sempre se iniciam com a “desculpa” de não serem preconceituosos contra a prática homoerótica, centrando fogo no que há de relevante, sua expressão pública, sua aceitação social como prática amorosa.
Afirmações correntes no sentido de que gay bom e aceitável é o “low profile”, que não expõe publicamente sua afetividade e erotismo, ou mesmo aquele que é “masculino” em seu comportamento (ou “feminino”, no caso das mulheres), ou seja, que gay legal é aquele que não é “bicha”. São claras manifestações de qual é o foco do preconceito, do que mais incomoda o fascismo heteronormativo cotidiano, qual seja, a expressão pública da homoafetividade, ou mais precisamente do homoerotismo.
O amor é um sentimento que exige expressão. O relato, a manifestação signica, seu discurso mesmo que gestual, no sentido de Roland Barthes, é “o tributo que o enamorado deve pagar ao mundo para reconciliar-se com ele”. Beijar em bancos de praça e andar de mãos dadas pelas calçadas são condutas próprias da paixão e do amor em sua expressão pública. São dele conteúdo e não apenas continente. Até o amor secreto carece de alguma forma ser expresso em sua intimidade e discrição; mesmo tendo o sabor intenso e o natural ônus da transgressão, sempre carece de expressão.
A repressão cotidiana à expressão homoerótica é a mais potente arma do preconceito e, hoje em dia, a mais corrente e aceita socialmente, como se reprimir a expressão do amor homossexual fosse aceitável, razoável. Que os gays se amem no sótão e não na sala.
No território jurídico, nada mais equivocado. O princípio da isonomia ou da igualdade estatuído no artigo 5º de nossa Constituição, entendido a partir de uma perspectiva laica, própria de um Estado Democrático de Direito, não permite que a expressão homoerótica seja tratada de forma desigual à heteroerótica. Onde for permitido o beijo público de um casal hétero, devera também o ser o beijo homo.
O direito à livre expressão de nossa Carta Magna, por evidente, inclui afetos em seu sentido e extensão e não apenas pensamentos dotados de razão e lógica.
Na perspectiva política, como falar em uma sociedade democrática e defensora de direitos humanos fundamentais sem tolerância ao diferente? Como tolher da pessoa a plenitude de realização de seu erotismo humano, aquele que é eivado de fantasias e desejos abstratos, que não é praticado apenas no cio e que não é feito apenas pelos órgãos reprodutivos? Aquele que, como quase tudo no humano, exige expressão na convivência?
A livre expressão homoerótica é direito fundamental específico, salvaguardado por nossa Constituição e inequivocamente inerente ao direito à dignidade humana e à busca da felicidade. Mais que um direito, um passo significativo para uma vida social mais humana e civilizada.