“Não se condenará mais ninguém por pressuposição”
Felipe Amorim – 28/11/2012 – 18h18
Na opinião do jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, o julgamento
do mensalão “é um soluço na história do Supremo Tribunal Federal”. Para o
renomado especialista em Direito Administrativo, a Suprema Corte do
país não vai repetir em outros casos a mesma “flexibilização de provas”
utilizadas para fundamentar a sentença: “não se condenará mais ninguém
por pressuposição”. Cético quanto à postura de alguns ministros na
condução da Ação Penal 470, o jurista avalia que garantias básicas foram
transgredidas, em um julgamento fortemente influenciado pelo furor do
que chamou de “opinião publicada”, difundida por jornais e revistas que
formam um verdadeiro “cartel”, na sua visão.
Para melhorar a dinâmica do STF, ferramenta útil seria a fixação de
um mandato de oito anos para que cada magistrado exerça o cargo. “Tanto
somos chamados de excelência, que o camarada acaba pensando que ele é a
excelência”, lembrou.
Embora há muito ouvida de um colega antigo e ex-membro da Suprema
Corte, a frase veio à memória do administrativista ao defender a fixação
do mandato rígido. Perguntado sobre como aperfeiçoar o modelo da mais
alta corte do país, confessa, no entanto, ter mais dúvidas do que
certezas. Ao mesmo tempo em que não consegue definir qual o melhor
processo para escolha dos novos ministros, Bandeira de Mello é assertivo
ao sugerir que o plenário deveria ter um número maior de juízes de
carreira entre o colegiado: são eles quem, “desde meninotes”, têm a
convicção de serem imparciais e alheios às influências.
Reconhecidamente um dos maiores nomes de Direito Administrativo do
país, Celso Antônio Bandeira de Mello foi responsável por encerrar o
seminário Direito Público na atualidade: diálogos latino-americanos, que
ocorreu na última terça-feira (27/11), na sede da Escola da AGU
(Advocacia-Geral da União), em São Paulo. À vontade na mesa de debate,
onde não raras vezes era reverenciado pelos colegas palestrantes no
evento — entre eles, um jurista argentino e um professor da
PUC-SP(Pontifícia Universidade de São Paulo) —, Bandeira de Mello foi
otimista ao especular sobre um futuro “risonho” do Direito Público no
país. Nesse cenário, o cidadão deverá participar e interferir ainda mais
diretamente nas decisões do Poder Público. “Hoje, as audiências
públicas servem apenas para uma meia dúzia de pessoas que vão, mas elas
chegarão a servir a todos”, aposta.
Em um dia inspirado para fazer projeções, Bandeira de Mello também
indicou que o futuro da humanidade está em países nórdicos como
Dinamarca, Noruega e Finlândia. “Eles revelam a visão de mundo mais
evoluída. Não há ricos e pobres”, comentou o jurista, impressionado com o
que testemunhou quando visitou a região escandinava. Passeando pelo
interior dos países, Bandeira de Mello achou curioso que todos
respeitavam religiosamente o limite de velocidade nas estradas mesmo sem
que houvesse nenhum tipo de fiscalização. Aliás, percebeu também que
havia pouquíssimos policiais nas ruas e que imigrantes confraternizavam à
vontade com os nativos nas praças públicas. “Meu Deus, isso é que é
civilização”, concluiu, digerindo tudo o que viu. “Se a sociedade
continuar caminhando ela vai chegar nesse ponto, em que as pessoas se
respeitam e onde está banida ao máximo a crueldade”, disse, admirado.
Embora rechace a alcunha de “um formalista kelseniano”, Celso Antônio
Bandeira de Mello reconhece que sofreu (e sofre) grandes influências
“deste que foi o maior jurista da história”. Para encerrar a sua fala, o
administrativista extraiu de Hans Kelsen um trecho sintomático — e que
também dialoga com a sua visão sobre o julgamento do mensalão,
especialmente no que se refere à falta de provas alegada pela defesa dos
réus. “Do fato de uma coisa ser, não se segue que deva ser. Do fato de
que uma coisa deva ser, não se segue que será”. Instigado pela epígrafe,
Bandeira de Mello lembra que é preciso ter em mente que a aplicação do
Direito está permeada e tisnada pelas condicionantes psicológicas,
sociais, políticas e pessoais. Isto é, embora o Direito fixe padrões
ideais de convivência e conduta, sua interpretação terrena não pode ser
vista como isolada e alheia às imperfeições do mundo em que vivemos.
Após o evento, Bandeira de Mello — sobrenome símbolo de uma família
que há cinco gerações está intrinsicamente ligada ao Direito — falou
ao Última Instância sobre mensalão, excesso de exposição dos juízes,
composição do Supremo e também sobre a crise deflagrada recentemente na
PUC-SP, universidade da qual integra o corpo docente. Perguntado sobre
as eleições na OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de São
Paulo), o jurista inscrito na Ordem declarou convictamente o seu voto em
Alberto Zacharias Toron, que encabeça uma das chapas de oposição. Leia a
íntegra da entrevista:
Última Instância — Com a fixação das penas, chegamos à reta
final do julgamento da Ação Penal 470. Como o senhor enxerga o
julgamento?
Bandeira de Mello — O mensalão, na minha visão, não
era mensalão porque não era mensal. Isso foi a visão que a imprensa
consagrou. Em segundo lugar, entendo que foram desrespeitados alguns
princípios básicos do Direito, como a necessidade de prova para
condenação, e não apenas a suspeita, a presunção de culpa. Além disso,
foi violado o princípio do duplo grau de jurisdição.
Há um mês atrás, um juiz mineiro decidiu anular os efeitos da
Reforma da Previdência. Ele citou textualmente o julgamento no STF para
alegar que a compra de votos foi comprovada e que, portanto, a reforma
seria inconstitucional. É possível anular atos do Legislativo com base
na tese do mensalão?
Bandeira de Mello — Se é com base no mensalão, não. A Reforma da
Previdência pode ser censurada por outros aspectos, mas não por causa do
mensalão. Acho que a chance de anular atos legislativos aprovados
durante o escândalo é zero. Isto, pois há um impedimento jurídico de que
quando um colegiado decide, quem decidiu foi o colegiado como um todo e
não os membros do colégio. É por isso que, se um indivíduo tem o
mandato invalidado, porque ele foi ilegalmente investido, isso não afeta
em nada [a validade dos atos].
O senhor se considera amigo do ex-ministro do Supremo Carlos Ayres Britto?
Bandeira de Mello — Ele é como um irmão.
Como avalia o mandato do ministro à frente da presidência do STF?
Bandeira de Mello — Não posso avaliar isso. Como vou falar a respeito dele? Ele é muito mais do que um amigo.
Sua gestão no Supremo se encerrou na semana passada, em
função da aposentadoria compulsório dos que atingem 70 anos de idade. O
senhor achou que a presidência de Ayres Britto foi curta demais?
Bandeira de Mello — Eu não posso dizer que foi curto demais, porque
eu acho que ninguém devia ser ministro por mais de oito anos. Na minha
opinião, o Supremo devia ter mandato fixado; oito anos, no máximo. Certa
vez, ouvi de um ministro a seguinte frase: “tanto somos chamados de
excelência, que o camarada acaba pensando que ele é excelência”.
Quanto ao processo de indicação dos novos ministros, qual é o melhor modelo?
Bandeira de Mello — Não há nada mais difícil do que
imaginar um bom processo de escolha. No passado, já sugeri que a
escolha fosse feita através de um processo de eleição entre todos os
juízes do Brasil. Mas, nem mesmo isso, eu me atrevo a dizer que será o
ideal. Porque isso é capaz de politizar tanto, criar tantos grupos de
partidários, que o mérito do candidato pode também ficar em segundo
plano.
Como deve ser o Supremo Tribunal Federal, então?
Bandeira de Mello — Hoje eu tenho poucas ideias a respeito de como
deve ser o Supremo. Uma delas é o mandato de oito anos. A outra: o
número de juízes de carreira devia ser maior entre os ministros.
Obrigatoriamente, deveria haver um número mínimo de juízes de carreira,
porque os juízes têm dentro de si, desde quando se formam, a convicção
de que devem ser imparciais e alheios, o máximo possível, das
influências. Devia haver um número mínimo obrigatório, eu colocaria pelo
menos dois terços de juízes de carreira. Porque o juiz de carreira é
diferente dos outros. Mesmo que você goste ou desgoste da maneira como
ele julga, deve reconhecer que ele tem um viés isento. Por exemplo, o
ex-ministro Cezar Peluso. As pessoas podiam gostar ou não gostar das
tendências pessoais dele, mas todos reconheciam que era um homem
aplicadíssimo, conhecia os processos em pauta como ninguém. Ele era um
homem com uma isenção absoluta, e isso é típico do juiz.
O senhor considera exagerada a publicidade que alguns magistrados recebem ao exercer suas funções jurisdicionais?
Bandeira de Mello — Antigamente, se dizia que o
“juiz só fala nos autos”. Eu acho que o juiz devia ser proibido de dar
entrevistas. E não só os ministros do Supremo — mas eles é que parecem
que gostam.
Qual é a sua impressão da postura do relator Joaquim Barbosa ao longo do julgamento?
Bandeira de Mello — Eu não gostei. Achei uma postura
muito agressiva. Nele não se lia a serenidade que se espera de um juiz.
Inclusive, em relação aos colegas, ele tinha que ter uma atitude de
maior urbanidade em relação aos colegas. E no caso do Lewandowski, ele é
um príncipe. Um homem de uma educação e uma finura monumental. É quase
que inacreditável que Barbosa tenha conseguido fazer um homem como
Lewandowski perder a paciência.
Recentemente, o grão-chanceler da PUC-SP, o cardeal Dom Odilo
Scherer, usou do artifício da lista tríplice para nomear a próxima
reitora da universidade. O cardeal escolheu a terceira candidata mais
votada nas eleições da comunidade. Na posição de professor da Faculdade
de Direito e filho do primeiro reitor leigo (não vinculado à Igreja) da
universidade, como o senhor enxerga essa decisão?
Bandeira de Mello — Eu avalio que o cardeal exerceu um direito dele. O
estatuto diz que o método é uma lista tríplice. Vou mais longe: os
candidatos não poderiam ter dito que não aceitariam se não fossem o
primeiro, pois isso equivaleria a dizer que o cardeal só pode nomear o
primeiro da lista tríplice. E isto não existe, eles estariam violando o
direito do cardeal escolher entre três. E eu acho que o cardeal tem esse
direito, porque está escrito. Nós podemos não gostar.
A decisão é legítima?
Bandeira de Mello — Não existe esse negócio de
ilegítimo, na minha opinião. Ou é legal, ou não é legal. Mas só podemos
falar em ilegítimo no sentindo em que ele aparece como imoral. E eu não
acho imoral, escolher entre os três mais votados, se o estatuto presente
permite. Se o estatuto considera, eu não vejo como imoral poder
escolher entre o que mais te agrada, acho legítimo.