sábado, 30 de abril de 2011

Classes sociais: a contradição entre o capital e o trabalho

O Brasil tem hoje uma estrutura de classes típica do modo de produção capitalista na qual predomina largamente os trabalhadores assalariados que, para obterem seus meios de sobrevivência, precisam vender sua força de trabalho ao capital. Nesta situação, o que é mesmo a chamada “nova classe média”?

Por José Carlos Ruy e Umberto Martins


A ideia de uma nova classe média virou lugar comum na mídia e no discurso de muitos políticos. Há uma espécie de comemoração pelo fato de milhões de brasileiros terem registrado uma melhora em sua renda e ascendido a padrões de consumo mais elevado. Muitos políticos se apresentam como pais desta promoção, entre eles tucanos como Fernando Henrique Cardoso, ansiosos por pegar uma carona no prestítio dela derivado.


Objetivo ideológico

Mas, concretamente, o que é que aconteceu mesmo? Na década de 1990 o discurso mais comum era aquele que desvalorizava a classe operária e dizia que o trabalho havia perdido a centralidade na produção moderna, e que o proletariado já não teria o papel histórico de agente da mudança que o marxismo clássico havia atribuido a ele.

A concepção corrente de “classe média” parece ter o mesmo objetivo: desvalorizar a luta de classes no capitalismo e os trabalhadores, encarados como “classe média”, uma espécie de amortecedor de conflitos, incapaz de um projeto próprio e independente e genuinamente reformista, vivendo imersa em fantasias consumistas .

É preciso examinar esta questão um pouco mais de perto. Aclassificação de uma população por critérios de renda e acesso ao consumo obedece principalmente a uma necessidade de mercado mas tem também uma função política que não se resume apenas às previsões de desempenho eleitoral . Ela também busca identificar também, no conjunto da população, aquela parte que pode servir – para segurança das classes dominantes - de amortecedor na luta de classes. Segmento que é transformado assim em alvo preferencial do esforço cultural e propagandístico (ideológico, portanto) de construção do consenso em torno da sociedade tal como ela está organizada. 


Critérios mercadológicos

As regras usadas neste esforço segmentam a população pela capacidade de consumo. No Brasil elas foram definidas pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa que anualmente atualiza o chamado Critério Brasil (CCEB, Critério de Classificação Econômica Brasil), que é umais usado. E que a ABPE define como “um instrumento de segmentação econômica que utiliza o levantamento de características domiciliares (presença e quantidade de alguns ítens domiciliares de conforto e grau escolaridade do chefe de família) para diferenciar a população. O critério atribui pontos em função de cada característica domiciliar e realiza a soma destes pontos. É feita então uma correspondência entre faixas de pontuação do critério e estratos de classificação econômica definidos por A1, A2, B1, B2, C1, C2, D, E. Isto é, examina a posse de bens de consumo como televisão em cores,

rádio, banheiro, automóvel, máquina de lavar, videocassete e/ou DVD, geladeira, freezer, se a família tem empregada mensalista, qual ograu de instrução do chefe de família e a renda familiar. 

Somados os pontos obtidos pela posse destes bens, serviços e capacidades, define-se os segmentos em A1, A2, B1, B2, C1, C2, D e E. Por exemplo, a renda mensal em 2009 incluia valores como 11.480 reais (Classe A1) a 1459 reais (C1) ou 680 reais (D). Com estes critérios, a distribuição da população em 2009 era de 0,5% (A1), 4% (A2), 28,4% (B1 e B2), 48,8% (C1 e C2), 17,1% (D) e 1,1% (E).

A fragilidade deste critério, entretanto, é visível quando, nos níveis mais altos (A e 

B) podem se encontrar patrões e empregados que por ventura alcancem a mesma pontuação medida pela posse de bens.



“Classe média, eu?”
É uma distorção nítida que provocou a reação da manicure carioca Josineide Mendes Tavares em 2008 quando foi procurada pela revista Época (quando foi divulgada pela primeira vez a tese do predomínio da “classe média” entre os brasileiros), “Classe média, eu?”, duvidou, com razão – ela é uma trabalhadora que prestava serviços a domicílio, com renda mensal entre 1.500 a 2.000 reais, moradora da Rocinha, no Rio de Janeiro, e cuja percepção de pertencimento de classe a coloca entre os trabalhadores e não entre aqueles setores tradicionalmente considerados com parte do “andar de cima”. 

Os próprios trabalhadores percebem a inadequação de uma maneira de ver a estratificação social que permite distorções deste tipo. Afinal, a maneira mais tradicional – que o povo vê como oposição entre “ricos” e “pobres” – é aquela que se baseia no controle das máquinas, ferramentas e demais meios de produção. O senso comum aponta assim para uma verdade científica sistematizada pela primeira vez por Karl Marx e Friedrich Engels há mais de 150 anos e que se tornou uma ferramenta política na luta contra o capitalismo: qualquer avaliação válida para se compreender as classes sociais decorre da compreensão da maneira como ocorrem as relações sociais de produção e da posição das pessoas dentro delas. 




Centralidade do trabalho
Marx e Engels, procuraram compreender os fundamentos sociais concretos da divisão entre os homens recusando todo subjetivismo e colocando o trabalho no centro da análise. Partindo da contradição objetiva entre trabalhadores diretos e proprietários dos meios e instrumentos de produção, procuraram aqueles fundamentos nas relações sociais de produção que envolvem, em seu âmbito, a cooperação e o conflito, e também a produção e distribuição da riqueza produzida. Para eles, as classes sociais se definem pela posição de cada um nestas relações de produção e na estrutura social que a organiza. 

Esta definição foi desenvolvida por Lênin. "Chama-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si pelo seu lugar num sistema de produção social historicamente determinado, pela sua relação (as mais das vezes fixada e formulada nas leis) com os meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e, consequentemente, pelo modo de obtenção e pelas dimensões da parte da riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de pessoas, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro graças ao fato de ocupar um lugar diferente num regime determinado de economia social" (“Uma grande iniciativa”. In Lênin, V. I. Obras escolhidas, V. 3. São Paulo, Alfa Omega, 1980). Aqui, classe social é encarada a partir de um conjunto de situações: o lugar ocupado no sistema de produção, a relação com os meios de produção, o papel na organização social do trabalho, e o modo de obtenção e tamanho da parte da riqueza social. Nesta definição, sem lugar para subjetivismos, a renda é apenas um dos traços explicativos de uma realidade mais complexa e que inclui outros elementos.


Complexidade do tema

Outros aspectos, fundamentais para a teoria marxista incluem a articulação da definição de classes sociais com a luta política (toda a história é a história da luta de classes, escreveram Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, de 1848), a consciência de classe que se forja na luta política e se concretiza num programa para atender os interesses dos trabalhadores e num partido que seja o instrumento e guia de sua luta, e também o desenvolvimento da divisão do trabalho que exige novas funções para atender às novas necessidades da produção e da distribuição dos produtos do trabalho. 

Neste sentido, o próprio Marx compreendeu (como deixou registrado em obras como O Capital e Teorias da Mais Valia) que a evolução capitalista poderia romper com uma visão simplista que opõe de forma dicotômica a burguesia (em suas diferentes facções) e o proletariado compreendido como operário de fábrica. O desenvolvimento da produção burguesa levará à diminuição do número de trabalhadors diretamente ligados à produção e ao crescimento da chamada “classe média”, escreveu ele. Chegou a dizer, polemizando com Thomas Malthus, que este seria o “curso da socieade burguesa”. Não que Marx tenha deixado de lado a ideia fundamental de uma polarização entre proprietários e trabalhadores, mas ela ocorreria num padrão abstrato mais alto: a contradição fundamental entre o capital e o trabalho. E incluiu as chamadas “classes médias” nesta polarização: ela seria formada pelos "servidores do público" (grupos profissionais, magistrados, artistas de diversões) que têem “um papel crescentemente significativo na manutenção da sociedade burguesa”, e também pelos pequenos produtores, empregados no comércio, atacadistas, lojistas, os que "mandam em nome do capital" (como gerentes e seus assistentes, supervisores, secretários, guarda-livros, funcionários), e finalmente o grupo "ideológico" formado por advogados, artistas, jornalistas, clero e funcionários do Estado. Note-se que a definição de classe média, neste caso, nada tem a ver com a concepção do “mercado”, cujo principal critério é a renda. 

A situação em que se encontra a produção capitalista na maior parte dos países no limiar do terceiro milênio, e mais de século depois da produção de Marx e Engels, confirma aquela previsão baseada na análise genial da lógica que predomina na produção capitalista. Num texto publicado em 2005 os professores da Univesidade de Campinas José Dari Krein e José Ricardo Gonçalves (“Mudanças Tecnológicas e seus Impactos nas Relações de Trabalho e no Sindicalismo do Setor Terciário”. In: Dieese/Cesit (Org.). O Trabalho no Setor Terciário: Emprego e Desenvolvimento Tecnológico. São Paulo: Dieese, 2005) enfrentaram a questão “o que é classe média, hoje?” 

Encontraram uma “classe média” muito diferente daquela que frequenta o imaginário, e mais próxima dos trabalhadores comuns. Ao analisar o inchaço do setor de telemarketing mostraram que, em 2003, ele tinha quinhentos mil trabalhadores, enquanto em São Paulo, entre 1997 e 2003 o número de empregados do florescente setor de telecomunicações caiu de 21 mil para menos de sete mil. Entre os bancários, houve queda semelhante, no país: passou de 890 mil trabalhadores no começo da década de 1990 para menos de 400 mil em 2003. Isto é, houve uma forte compressão num setor significativo da classe média tradicional (como os bancários) ao mesmo tempo em que aumentou a parcela representativa de uma moderna “classe média” com menor qualificação (com renda mais baixa e condições de trabalho mais precárias), como os operadores de telemarketing. 

Outro setor profissional que explodiu foi o dos motoqueiros. Em todo o país o número de motocicletas pulou de 692 mil em 2001 para 1,6 milhão em 2007. Só em São Paulo existem entre 3,5 mil e 8 mil empresas de motofrete, mas só 400 estão credenciadas na prefeitura. Na cidade, calcula-se que existam entre 140 mil e 300 mil motoboys, mas só 18 mil têm carteira assinada, e 40 mil são autônomos. A imensa maioria (entre 80 mil a 240 mil) trabalha em condição irregular (ver Tânia Caliari e Rafael Hernandes, “Motoboys, o exército da salvação”, in Retrato do Brasil, nº 15). Na verdade, o que se vê hoje é uma classe bem mais heterogênea do que na fase inicial do capitalismo ou do capitalismo concorrencial, pré-imperialista. 


Falso conceito 

O falso conceito de “classe média” usado pela mídia e pelo marketing obscurece o fato de que a mobilidade social dos pobres ocorreu principalmente pela incorporação, durante o governo Lula, de milhões de trabalhadores desempregados às atividades produtivas, bem como o aumento da massa salarial e dos salários, começando pelo mínimo. A mobilidade social significou, essencialmente, um movimento no interior da classe trabalhadora. Se julgarmos a realidade social pelos critérios marxistas, que diverge radicalmente das concepções dominantes, o que vem sendo chamado de “nova classe média” na verdade é a classe trabalhadora, que vive da venda de sua força de trabalho, ganha salários que cresceram nos últimos anos mas ainda são baixos. 

Estima-se em cerca de 15 milhões o número de novos postos de trabalho formais gerados entre 2002 a 2010, derrubando a taxa de desemprego aberto nas seis maiores regiões metropolitanas do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e Recife) dos 13% de 2003 para 6,5% em 2011, d acordo com o IBGE. 



Informalidade 

É uma classe trabalhadora que vive um crescimento no emprego formal (que incluia 34,5% dos trabalhadores em 2008) mas se encontra, em sua maioria (cerca de dois terços do total), na informalidade, desemprego e subemprego e em atividades definidas como “conta própria”. Isto revela um mercado de trabalho fortemente marcado ou deformado pela informalidade, no qual o capital domina o trabalho usando diferentes formas jurídicas de contratação. 

Em 2009, 42,9% da população ocupada trabalhavam nas atividades classificadas como serviços; 17,8% no comércio; 17% nas atividades agrícolas (de 21,1% para 17%); 14,7% na indústria de transformação; 7,4% na construção. O setor terciário empregava 60,7%. O crescimento dos empregados no comércio é notável, passando de 2.263.000 em 1970, quando eram menos da metade do pessoal ocupado na indústria (5.263.000), para mais de 15 milhões em 2009, superando a indústria de transformação. Este é, contudo, um sinal do crescimento do contingente da classe trabalhadora: dos 39,4 milhões de trabalhadores com carteira assinada, 7,3 milhões são comerciários, ou seja, 18,6% da força de trabalho formal, segundo dados do Ministério do Trabalho. É uma categoria superexplorada: trabalha em média mais de 44 horas por semana, recebe baixos salários, e há grande taxa de informalidade.




Polarização 

Um perfil das classes sociais no Brasil elaborado a partir de dados fornecidos em 1998 pelo professor Waldir Quadros, da Unicamp, permite uma visualização aproximada da situação contemporânea. Segundo aqueles dados a classe dominante era formada pela burguesia, com 15,3% do total (5,5% de patrões mais 9,8% de profissionais que fazem parte da burguesia), 71,6% de assalariados (incluindo 8,6% de profissionais e trabalhadores autônomos de classe média, 7% da classe média assalariada , 47,5% de trabalhadores que ele chamou de operários e classe média inferior, 3,3% de trabalhadores domésticos, 3,2% de assalariados rurais, 2% de trabalhadores rurais temporários e 10,3% de “autônomos” (9,1% “Conta própria”, 0,7% de “Autônomos”, 0,5% de rurais autônomos) havendo ainda 2,8% de outros ou sem ocupação declarada (dados retirados de Waldir Quadros, A nova classe média. Cit In Folha de S Paulo, 7/10/2001).

São dados já antigos. Mas eles revelam uma polarização nítida na estrutura de classes brasileira, opondo um claramente majoritario contingente de assalariados a um minoritário número de empregadores: os assalariados eram quase três quartos do total (71,6%) deixando entrever o predomínio númerico, em nossa estrutura social, daqueles que, separados dos meios e instrumentos de produção, só podem obter os bens necessários à sua sobrevivência se conseguirem vender sua força de trabalho à minoria de 5,5% formada pelos donos do capital.

É a estrutura de classes de um país onde o modo de produção capitalista é hegemônico e onde a contradição social fundamental se dá, como Marx havia assinalado há mais de cem anos, entre o capital e o trabalho.