Ação policial de busca e apreensão de militantes do MST que ocuparam terras griladas da transnacional traumatizou seus familiares
“Não vai levantar não, vagabundo? O senhor usa droga?”. Eram 5 horas da manhã, quando a porta de lona e madeira de Gentil Alves, um senhor de 78 anos, era arrancada por quatros homens. Sozinho em seu “barraco”, ele viu toda a roupa de sua família ser jogada e revirada no chão.
“Um magrinho falou: 'o véio não deve não, daqui um dia, nós volta'. Fiquei tremendo de medo”, recorda-se Seu Gentil, camponês que possui um lote de 6 alqueires no assentamento Loiva Lourdes, em Borebi, no interior do estado de São Paulo. Ele e sua mulher, dona Nair, de 66 anos, moram com a neta e a bisneta de 6 meses. Ele foi um, entre tantos, que foi surpreendido com a chamada Operação Laranja, da Polícia Civil de São Paulo, investigação que desencadeou as detenções de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) devido à destruição de pés de laranja da transnacional Cutrale, ocorrida em outubro do ano passado.
Na manhã do dia 26 de janeiro, a operação que envolveu cerca de 150 policiais no cumprimento de mandados de busca e apreensão invadiu vários outros barracos. A procura de militantes resultou em nove presos. Além do assentamento onde vive seu Gentil, também o Zumbi dos Palmares sofreu as investidas da operação, coordenada por Benedito Antônio Valencise, delegado seccional de Bauru. Com 20 mandados de prisão, sete pessoas terminaram detidas por mais de duas semanas; os outros 13 não foram encontrados.
Cadeias diferentes
Para entidades de defesa de direitos humanos, a gigantesca ação policial foi considerada desnecessária e oportunista, visto que todos detidos tinham residência fixa e trabalhavam. Questionado pelo fato de não ter intimado as pessoas, Valencise argumenta que o sigilo era fundamental e está dentro da lei. “Às vezes, a pessoa não está e a intimação fica com o vizinho. A partir daí, surge uma grande divulgação e a pessoa, com medo, talvez não vá depor. Quando fomos prender o Miguel [Serpa], ele tentou fugir. Quer dizer, se eu o intimasse, será que ele iria comparecer ou iria fugir?”, questiona.
Mas isso não é o que pensa o deputado estadual Simão Pedro (PT). “A polícia não pode ser utilizada como instrumento político-partidário de uma força política”, dispara, referindo-se ao governador José Serra, do PSDB. “Por que prender pessoas que já estavam à disposição da polícia, têm endereço fixo, são réus primários e se dispuseram a colaborar?”, questiona o deputado.
Uma das ações mais criticadas da ação policial foi a separação dos militantes em quatro cadeias diferentes da região. O delegado seccional de Bauru explica que o objetivo era, tão somente, o bem-estar deles. “A nossa unidade prisional aqui é em Duartina. Lá, a cadeia supera a sua capacidade. Então dividimos. Mais para garantir total assistência à visita de advogados e de pessoas ligadas a direitos humanos”, explica Valencise.
Bandeiras e cartilhas
O delegado Valencise assegura que não houve nenhum tipo de violência quando ocorreu o cumprimento dos mandados busca, apreensão e prisão nos assentamentos. “Graças a Deus, não houve qualquer tipo de violência, não houve um tiro sequer e não houve qualquer tipo de agressão. A Rosimeire sequer foi algemada. Foi colocada na viatura, no mesmo compartimento, junto conosco, para que não houvesse nenhum tipo de problema”, detalha o delegado.
Na casa de Rosimeire Serpa, vereadora em Iaras pelo Partido dos Trabalhadores (PT), antes de a terem levado, juntamente com seu marido, Miguel Serpa, os policiais apreenderam celulares, bandeiras do MST, do PT, livros e cartilhas das duas organizações. O que chamou a atenção de Rosimeire foi a irritação de alguns policiais com o fato de existir uma biblioteca na sala de sua casa.
Se o tratamento dado à vereadora do PT em Iaras foi respeitoso, a experiência de outros assentados foi bem diferente. Paulo Rogério Beraldo, 22 anos, reside no assentamento Loiva Lourdes. Quando os policiais invadiram sua casa, às 6h da manhã do dia 26 de janeiro, assustaram toda a sua família.
Ele e sua mãe, Catarina de Castro, estavam prontos para acender o fogo da lenha quando repararam uma movimentação de pessoas atrás das árvores mais próximas da casa, uma pequena construção de madeira com paredes de lonas e teto de telhado.
“Filho-da-puta”
“ Eles perguntaram se havia arma. Quiseram saber onde estavam as notas fiscais do gerador e da motoserra”, conta a mãe de Paulo. Naquele momento de estresse com a prisão de seu filho, dona Catarina, nervosa, não conseguia encontrar a nota do gerador de energia que havia comprado. Alguns assentados do Loiva Lourdes destacaram que os policiais de Valencise apreenderam objetos estranhos às necessidades de investigação de furto: de documentos médicos a papéis que identificam os lotes dos assentados perante o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Questionado pela reportagem sobre o gerador que comprovadamente pertence à família de Catarina, Valencise pondera que, em relação àquilo que se apreende e não se comprova de imediato a procedência, é feita uma verificação. “Se não for comprovado o furto, pode ter certeza que será devolvido ao poder de quem se encontrava”, afirma. Entretanto, desde o dia 26 de janeiro, a casa da mãe de Paulo vive sem energia elétrica.
Algemado, o rapaz de 22 anos foi levado à delegacia de Promissão. Ficou detido na mesma cela que Anselmo Alves Villas Boas, conhecido como Gaúcho. A esposa de Gaúcho, Nair, conta como a polícia “chegou” em sua casa, no assentamento Zumbi dos Palmares. “Eles chegaram gritando, chamando ele de filho-da-puta. Chegaram a jogar gás pimenta no barraco. Então meu marido pediu para que não fizessem esse escândalo”, lembra.
“De tanto medo”
As famílias que tiveram suas casas invadidas estão traumatizadas. “Eu quero uma resposta, estou me sentindo muito pressionada. Não consigo mais ficar dentro de casa”, desabafa Nair, já emendando que “não é por isso que a gente vai parar. Eu vou continuar lutando”.
Maria José Bezerra, esposa de outro camponês que ficou preso durante os 16 dias – seu Máximo Albino, de 60 anos –, lembra que seus netos foram acordados com armas apontadas para suas cabeças. Após a investida policial, nenhuma criança sai de casa, “de tanto medo”, lembra a mulher, que vive no assentamento Zumbi dos Palmares. De acordo com ela, enquanto permanecia preso, o marido estava deprimido e sem vontade de se alimentar.
O advogado Jorge Soriano sugere um retrocesso na histórica da democracia brasileira. “Infelizmente, a polícia ainda tem imbuído, em seu atos, resquícios da ditadura militar. Ela ainda se acha superior e no direito de constranger ou retirar direitos dos cidadãos. Não precisava. Bastaria bater na porta da casa”, conclui o advogado dos ex-detidos.
Fonte: Brasil de Fato