terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Cultura de elite e a revolução egoísta


“Cultura de elite”. Esse era o fascinante termo que eu mesmo formava -- assincronicamente, porque já existia -- diante das primeiras análises críticas com as quais me deparava na faculdade. Por mais que fosse logo cedo perder todo o amor por aquele curso, até hoje vejo apaixonadamente as ligações entre uma cultura elitista e uma linguagem elitista, manifestada pelo preconceito linguístico enraizado na sociedade de forma xenófoba, racista e classista.

Nesta sociedade se permeiam alguns elementos que, com a justificativa de que certas partes da cultura -- a ver, o BBB -- são “fúteis” e que são “alienação”, praticam uma certa abstinência cultural com a qual lidam como se fosse um traço de sua personalidade. Contudo, continuam a reproduzir discursos machistas, cis-heterossexistas, racistas, classistas; isto é, discursos fúteis e alienados. Há uma evidente desconexão entre aquilo que problematizam no conteúdo “do povão” e do que problematizam em seus próprios discursos. Ou seja, o problema não está de fato no discurso (do BBB, do povão, ou seu próprio): o problema está no povão. E no que quer que dele parta, para ele seja, ou que ele endosse.

Este elitismo cultural, contudo, não vem de uma elite burguesa com a mesma força que vem de cidadãs e cidadãos de classe média que, munidos de resquícios culturais de sua ascensão recente, decidiram que um certo panteão cultural iria reinar dali em diante: o roque e a MPB (com seu próprio Zeus, Chico Buarque), o Discovery Channel, os livros. Mas muito mais importante do que a sua cultura elitista, americanizada e grafocêntrica, o ponto central desta nata da cultura nacional não era a exaltação destas formas primordiais de cultura, mas sim o ódio constante na direção de qualquer produto de matrizeis culturais designadas como inferiores. E por inferiores, leia-se “pobres e negras”.

Dalí nascia a legião de demônios da elite cultural da classe média brasileira: o RAP e o funk, a televisão (encabeçada pelo Hades da alienação, a Rede Globo), a mídia em vídeo, as formas de comunicação não-verbais como a dança e o discurso oral, a Internet e tudo aquilo que fugisse da matriz burguesa à qual a classe média apaixonadamente se agarrava como sua amada genitora. Se não podia apegar-se aos seus violinos e óperas, ao teatro clássico e aos recitais, ao menos tomaria para si tanta arrogância quanto possível no que tangia moralizar os passos de dança da periferia carioca.

Os jovens roqueiros que arrogantemente destilam o discurso elitista contra qualquer pessoa que por acaso goste de funk parecem muito preocupados em fiscalizar a qualidade e a profundidade das letras que são cantadas nos bailes, e a tecer comentários moralistas sobre seu conteúdo. Contudo, uma vez confrontados com as maravilhosas letras do Velhas Virgens, tudo se justifica. Não pelo tom, pela origem ou pelxs sujeitxs, mas sim pelo fato de que agora constam guitarras.

Desta mesma forma, o Big Brother tornaria-se o grande chamariz de suas críticas a uma cultura futil, “de povão”, que não merece atenção ou cuidado. Mas sobre todas as coisas, o fato de que aquilo é inerentemente uma cultura ruim, não por causa de uma análise crítica da classe média, mas porque assim determinou. Isto é tão central para os mandamentos da elite cultural estabelecida que logo vemos o raciocínio alastrar-se para a música, a dança.


Estas sujeitas e sujeitos que parecem detestar a “alienação” promovida pela mídia, contudo, não tratam-se de ativistas por direitos humanos, de pessoas que decidiram questionar a forma hegemônica como a informação nos chega ou a realmente enxergar o quão ideológico é este discurso (e a, aliás, entender o que é “alienação” e “Ideologia”, já que isto tanto lhes incomoda). E, por vezes, são exatamente estes. Mas insistem em hierarquizar a cultura a tal ponto que deixam as pessoas que estão tentando retirar de uma condição de opressão à margem de sua postura elitista em relação à mídia que consomem.

Pelo contrário. Acreditando estarem munidxs de um discurso realmente sábio, e de estar manifestando inteligência ao colocar sobre a mesa toda sua indignação com o fato de algumas pessoas preferirem ouvir funk a ouvir roque, acabam sendo meros reprodutores dos discursos ideológicos que a própria mídia à qual chamam alienadora deseja passar.
Esquecem-se que o roque também é mídia de massa. Também vende, também se volta ao dinheiro, também produz futilidades e mentiras, também passa ridículo. Esquecem-se que os livros também falam bobagem, que os Beatles eram uma boy-band, que John Lennon era um hipócrita. Ou seja, não é o caso que estejam selecionando algo porque é realmente genuíno ou artístico (por seus padrões), mas porque cabe na sua definição hierarquizada de “boa cultura”.

Isto é, munidos de camisetas e de ódio às pessoas que assistem a Rede Globo, acreditam que por terem desligado suas televisões iluminaram-se, e que agora possuem um maior entendimento de até onde a vida precisa ir porque podem dizer de boca cheia que não são proponentes de um capitalismo meritocrático que assistem televisão, mas proponentes de um capitalismo meritocrático que não assistem televisão.

Este discurso se engrandece não porque realmente existe algo de intrinsecamente menos crítico na televisão e de mais crítico nos livros, mas porque estes grupos conseguiram com sucesso construir para si uma noção de inteligência naqueles que gostam de Chico Buarque, não gostam da Rede Globo e usam a palavra “sistema” como quem fala de um inimigo distante. Infelizmente, as pessoas que se abstém das matrizes culturais que julgam serem inerentemente ruins, seja a Rede Globo ou o vulgar batidão do baile funk, ainda estão sendo extremamente machistas, heterossexistas, cissexistas, racistas, machistas, especistas.

Ou seja, não há muito significado -- mesmo que você esteja envolvido em uma ação social ou outra, mesmo que você tenha passado a se dizer anarquista ou comunista, mesmo que seu novo passatempo seja compartilhar no Facebook imagens de como “o povo” é alienado, submisso e passivo. Esta elite cultural possui uma obsessão por tratar o povo como uma massa de manobra que somente assiste os acontecimentos.

Não nego que seja realidade que a Hierarquia tenha anestesiado a população a tal ponto (tanto quanto não nego que a Rede Globo seja manipuladora!), mas não compactuo com a ideia de que tais pessoas se prezem ao papel de revolucionárias com seus discursos à margem da misantropia, munidas de analogias especistas entre as cidadãs e cidadãos com “ovelhas do sistema”; com seu ódio focado contra emissoras de tevê e seu papel alienante; se estas pessoas não estão prontas para realmente colocar em cheque o que há de ideológico em seus próprios discursos, em sua própria educação, e de realmente afundar suas orelhas em discursos de igualdade e justiça social. Repudiarei sua postura enquanto não transcenderem o discurso elitista -- que não requer nenhuma prática de fato -- para que tomem responsabilidade sobre seus próprios julgamentos e atos, e passem a manifestar não só a crítica vazia à mídia, mas a praticar a mudança em suas próprias vidas a partir de ontem.

A revolução será praticada.



“Pessoas que falam sobre revolução e luta de classes sem fazer referências explícitas à vida cotidiana, sem entender o que há de subversivo no amor e o que há de positivo na recusa de imposições; estas pessoas têm um cadáver na boca.”
— Raoul Vaneigem

Por Edilson F.º
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