“Cultura de
elite”. Esse era o fascinante termo que eu mesmo formava --
assincronicamente, porque já existia -- diante das primeiras análises
críticas com as quais me deparava na faculdade. Por mais que fosse logo
cedo perder todo o amor por aquele curso, até hoje vejo apaixonadamente
as ligações entre uma cultura elitista e uma linguagem elitista,
manifestada pelo preconceito linguístico enraizado na sociedade de forma
xenófoba, racista e classista.
Nesta
sociedade se permeiam alguns elementos que, com a justificativa de que
certas partes da cultura -- a ver, o BBB -- são “fúteis” e que são
“alienação”, praticam uma certa abstinência cultural com a qual lidam
como se fosse um traço de sua personalidade. Contudo, continuam a
reproduzir discursos machistas, cis-heterossexistas, racistas,
classistas; isto é, discursos fúteis e alienados. Há uma evidente
desconexão entre aquilo que problematizam no conteúdo “do povão” e do
que problematizam em seus próprios discursos. Ou seja, o problema não
está de fato no discurso (do BBB, do povão, ou seu próprio): o problema está no povão. E no que quer que dele parta, para ele seja, ou que ele endosse.
Este
elitismo cultural, contudo, não vem de uma elite burguesa com a mesma
força que vem de cidadãs e cidadãos de classe média que, munidos de
resquícios culturais de sua ascensão recente, decidiram que um certo
panteão cultural iria reinar dali em diante: o roque e a MPB (com seu
próprio Zeus, Chico Buarque), o Discovery Channel, os livros. Mas
muito mais importante do que a sua cultura elitista, americanizada e
grafocêntrica, o ponto central desta nata da cultura nacional não era a
exaltação destas formas primordiais de cultura, mas sim o ódio constante
na direção de qualquer produto de matrizeis culturais designadas como
inferiores. E por inferiores, leia-se “pobres e negras”.
Dalí nascia a
legião de demônios da elite cultural da classe média brasileira: o RAP e
o funk, a televisão (encabeçada pelo Hades da alienação, a Rede Globo),
a mídia em vídeo, as formas de comunicação não-verbais como a dança e o
discurso oral, a Internet e tudo aquilo que fugisse da matriz burguesa à
qual a classe média apaixonadamente se agarrava como sua amada
genitora. Se não podia apegar-se aos seus violinos e óperas, ao teatro
clássico e aos recitais, ao menos tomaria para si tanta arrogância
quanto possível no que tangia moralizar os passos de dança da periferia
carioca.
Os jovens
roqueiros que arrogantemente destilam o discurso elitista contra
qualquer pessoa que por acaso goste de funk parecem muito preocupados em
fiscalizar a qualidade e a profundidade das letras que são cantadas nos
bailes, e a tecer comentários moralistas sobre seu conteúdo. Contudo,
uma vez confrontados com as maravilhosas letras do Velhas Virgens, tudo
se justifica. Não pelo tom, pela origem ou pelxs sujeitxs, mas sim pelo
fato de que agora constam guitarras.
Desta mesma
forma, o Big Brother tornaria-se o grande chamariz de suas críticas a
uma cultura futil, “de povão”, que não merece atenção ou cuidado. Mas
sobre todas as coisas, o fato de que aquilo é inerentemente uma
cultura ruim, não por causa de uma análise crítica da classe média, mas
porque assim determinou. Isto é tão central para os mandamentos da
elite cultural estabelecida que logo vemos o raciocínio alastrar-se para
a música, a dança.
Estas
sujeitas e sujeitos que parecem detestar a “alienação” promovida pela
mídia, contudo, não tratam-se de ativistas por direitos humanos, de
pessoas que decidiram questionar a forma hegemônica como a informação
nos chega ou a realmente enxergar o quão ideológico é este discurso (e
a, aliás, entender o que é “alienação” e “Ideologia”, já que isto tanto
lhes incomoda). E, por vezes, são exatamente estes. Mas insistem em
hierarquizar a cultura a tal ponto que deixam as pessoas que estão
tentando retirar de uma condição de opressão à margem de sua postura
elitista em relação à mídia que consomem.
Pelo
contrário. Acreditando estarem munidxs de um discurso realmente sábio, e
de estar manifestando inteligência ao colocar sobre a mesa toda sua
indignação com o fato de algumas pessoas preferirem ouvir funk a ouvir
roque, acabam sendo meros reprodutores dos discursos ideológicos que a
própria mídia à qual chamam alienadora deseja passar.
Esquecem-se
que o roque também é mídia de massa. Também vende, também se volta ao
dinheiro, também produz futilidades e mentiras, também passa ridículo.
Esquecem-se que os livros também falam bobagem, que os Beatles eram uma boy-band,
que John Lennon era um hipócrita. Ou seja, não é o caso que estejam
selecionando algo porque é realmente genuíno ou artístico (por seus
padrões), mas porque cabe na sua definição hierarquizada de “boa
cultura”.
Isto é,
munidos de camisetas e de ódio às pessoas que assistem a Rede Globo,
acreditam que por terem desligado suas televisões iluminaram-se, e que
agora possuem um maior entendimento de até onde a vida precisa ir porque
podem dizer de boca cheia que não são proponentes de um capitalismo
meritocrático que assistem televisão, mas proponentes de um capitalismo
meritocrático que não assistem televisão.
Este
discurso se engrandece não porque realmente existe algo de
intrinsecamente menos crítico na televisão e de mais crítico nos livros,
mas porque estes grupos conseguiram com sucesso construir para si
uma noção de inteligência naqueles que gostam de Chico Buarque, não
gostam da Rede Globo e usam a palavra “sistema” como quem fala de um
inimigo distante. Infelizmente, as pessoas que se abstém das
matrizes culturais que julgam serem inerentemente ruins, seja a Rede
Globo ou o vulgar batidão do baile funk, ainda estão sendo extremamente
machistas, heterossexistas, cissexistas, racistas, machistas,
especistas.
Ou seja, não
há muito significado -- mesmo que você esteja envolvido em uma ação
social ou outra, mesmo que você tenha passado a se dizer anarquista ou
comunista, mesmo que seu novo passatempo seja compartilhar no Facebook
imagens de como “o povo” é alienado, submisso e passivo. Esta elite
cultural possui uma obsessão por tratar o povo como uma massa de manobra
que somente assiste os acontecimentos.
Não nego que
seja realidade que a Hierarquia tenha anestesiado a população a tal
ponto (tanto quanto não nego que a Rede Globo seja manipuladora!), mas
não compactuo com a ideia de que tais pessoas se prezem ao papel de
revolucionárias com seus discursos à margem da misantropia, munidas de
analogias especistas entre as cidadãs e cidadãos com “ovelhas do
sistema”; com seu ódio focado contra emissoras de tevê e seu papel
alienante; se estas pessoas não estão prontas para realmente colocar em
cheque o que há de ideológico em seus próprios discursos, em sua própria
educação, e de realmente afundar suas orelhas em discursos de igualdade
e justiça social. Repudiarei sua postura enquanto não transcenderem o
discurso elitista -- que não requer nenhuma prática de fato -- para que
tomem responsabilidade sobre seus próprios julgamentos e atos, e passem a
manifestar não só a crítica vazia à mídia, mas a praticar a mudança em
suas próprias vidas a partir de ontem.
“Pessoas que falam sobre revolução e luta de classes sem fazer
referências explícitas à vida cotidiana, sem entender o que há de
subversivo no amor e o que há de positivo na recusa de imposições; estas
pessoas têm um cadáver na boca.”
— Raoul Vaneigem