sexta-feira, 14 de maio de 2010

João Cândido, petróleo, racismo e emprego

A Transpetro lançou ao mar o navio petroleiro João Cândido. Batizado com o nome de um dos nossos heróis, marinheiro negro, filho de escravos e líder da Revolta da Chibata, o navio tem 247 metros de comprimento, casco duplo que previne acidente e vários significados históricos. Primeiro, leva a industrialização para Pernambuco, contribuindo para reduzir as desigualdades regionais. Em segundo lugar, dá um cala-boca para quem insinuou de forma maldosa que o PAC era apenas virtual. Em terceiro, prova que está em curso a remontagem da indústria naval brasileira criminosamente destruída na era da privataria. O artigo é de Beto Almeida.
Beto Almeida (*)

Nesta sexta-feira a Transpetro lançou ao mar o navio petroleiro João Cândido. Batizado com o nome de um dos nossos heróis, marinheiro negro, filho de escravos e líder da Revolta da Chibata, o navio tem 247 metros de comprimento, casco duplo que previne acidente e vários significados históricos. Primeiro, leva a industrialização para Pernambuco, contribuindo para reduzir as desigualdades regionais. Em segundo lugar, dá um cala-boca para quem insinuou de forma maldosa que o PAC era apenas virtual. Em terceiro, prova que está em curso a remontagem da indústria naval brasileira criminosamente destruída na era da privataria. Como um simbolismo adicional, um total de 120 operários dekasseguis foram trazidos do Japão, com suas famílias, para juntarem-se aos operários nordestinos que construíram o navio. Os primeiros não precisam mais morar longe da pátria; os outros, saem do canavial para a indústria e não precisam mais pegar o pau-de-arara, nem entoar com amargura a Triste Partida, de Patativa do Assaré, como um certo pernambucano teve que fazer na década de 50. Até que virou presidente.

Mulheres trabalhando como chefes de equipe de soldagem no Estaleiro Atlântico Sul, no município de Ipojuca, em Pernambuco, pronunciavam frases orgulhosas lembrando que não sabiam nem que esta também poderia ser uma tarefa feminina. O ex-pescador de caranguejo contava em depoimento agreste que antes do estaleiro não sabia direito como ganhar o sustento da família a cada dia que acordava. O ex-canavieiro, agora operário, destaca que não depende mais temporalidade insegura da colheita da cana e quando acorda já tem para onde ir, quando antes vivia a insegurança. Estes alguns dos vários depoimentos colhidos na inauguração do navio petroleiro João Cândido ao ser lançado ao mar pernambucano. Deixa em terra um rastro de transformação.


Inicialmente, na vida destas pessoas antes lançadas ao deus-dará de uma economia nordestina reprimida, desindustrializada. A transformação atinge os municípios mais próximos, pois no local onde foi construído o estaleiro, uma antiga moradora, Mônica Roberta de França, negra de 24 anos, que foi escolhida para ser a madrinha do navio, dizia que ali era um imenso areal, não tinha nada. Agora tem uma indústria e uma escola técnica para os jovens da região. E que só agora ela tem seu primeiro emprego na vida com carteira assinada.


Desculpas à Nação

Para o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, o lançamento do João Cândido ao mar tem o mesmo alcance histórico do gesto de Getúlio Vargas quando deu forte impulso à nacionalização da indústria naval brasileira, na década de 30, por meio da empresa de navegação estatal. “Aqueles que destruíram a indústria naval tem que assumir sua responsabilidade e pedir desculpas à Nação”, disse Campos na solenidade que teve a participação de 5 mil pessoas aproximadamente, sobretudo dos operários.

O Navio João Cândido abre uma nova rota para a economia brasileira. Incialmente, porque a Petrobrás já não será obrigada a desembolsar cerca de 2,5 bilhões de reais por ano com o afretamento de navios estrangeiros. Há, portanto, um revigoramento do papel do estado na medida em que a reconstrução da indústria naval brasileira é resultado direto de encomendas da nossa empresa estatal petroleira. O que também permite avaliar a gravidade e o caráter antinacional das decisões que levaram um país com a enorme costa que possui, tendo montado uma economia naval de peso internacional respeitável, retroceder em um setor tão estratégico.


E isso quando nossa economia petroleira, há anos, já dava sinais de expansão, mesmo quando estavam no poder os que promoveram o espantoso sucateamento, a desnacionalização e a abertura da navegação em favor dos países que querem impedir nosso desenvolvimento. Este tema, certamente, não poderá faltar nos debates da campanha presidencial deste ano.


Almirante negro

A escolha do nome João Cândido também foi destacada na solenidade por meio do novo ministro da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, Eloy Moreira. Vale registrar que há pouco mais de um ano Lula participou de homenagem ao Almirante Negro inaugurando sua estátua na Praça XV, no Rio, que estava há anos guardada, supostamente porque não teria havido grande empenho da Marinha na realização desta solenidade. Pois bem, agora João Cândido não está apenas nas “pedras pisadas do cais”, com diz a maravilhosa canção de Bosco e Blanc. Está na estátua e está cruzando mares levando para o mundo afora o nome de um de nossos heróis.

Navegar é possível

O novo petroleiro estatal, portanto, é uma prova real de que sim “navegar é possível”, como dizia uma faixa no ato. Navegar na rota inversa daquela que promoveu o desmantelamento da nossa indústria naval. Navegar na rota da revitalização e qualificação do papel protagonista do estado. Recuperar um curso que havia sido fundado lá durante a Era Vargas onde se combinava industrialização e nacionalização com geração de empregos e direitos trabalhistas. Se no período neoliberal foi proclamada a idéia de destruir a “Era Vargas”, agora, está não apenas proclamada, mas já colocada em marcha, a necessidade de reconstruir a partir dos escombros da ruína das privatizações - entulho neoliberal - tendo no dorso no navio-gigante o nome heróico do líder da Revolta da Chibata. Sem revanchismo, o episódio permite lembrar outra canção: “É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”


(*) Presidente da TV Cidade Livre de Brasília
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A REVOLTA DA CHIBATA

João Cândido, o Almirante Negro

O Congresso brasileiro restabeleceu, no mês de agosto de 2003, os direitos de todos os marinheiros envolvidos na chamada "Revolta da Chibata", ocorrida em 1910. O decreto devolve aos marinheiros suas patentes, permitindo que recebam na Justiça os valores a que teriam direito se tivessem permanecido na ativa. Após 93 anos, resgata-se a memória dos marujos, especialmente do líder da Revolta, João Cândido Felisberto, o "Almirante Negro".
Para entender a história de João Cândido e da Revolta da Chibata - uma das poucas revoltas populares que atingiu seus objetivos no Brasil - é preciso voltar a 1910. Neste ano, no meio de uma grande instabilidade política, o militar Hermes da Fonseca é eleito para a presidência.
Na noite do dia 22 de novembro de 1910, o novo presidente recebe a notícia: os canhões de alguns dos principais navios de guerra da Marinha Brasileira – neste momento ancorados em frente à cidade, na Baía de Guanabara - apontam para a capital do Rio de Janeiro e para o próprio palácio de governo. As tripulações se rebelaram e tomaram os principais navios da frota.
 
O Minas Gerais, um dos modernos navios recém-adquiridos pela Marinha na época da Revolta
 
Três oficiais e o comandante do encouraçado Minas Gerais, João Batista das Neves, estão mortos. Os demais oficiais são pegos de surpresa: os marinheiros manobram a frota exemplarmente, como não acontecia sob seu comando. O movimento, articulado por marinheiros como Francisco Dias Martins, o "Mão Negra" e os cabos Gregório e Avelino, tem como seu porta-voz o timoneiro João Cândido.
A última chicotada
Os motivos principais da Revolta eram simples: o descontentamento com os baixos soldos, a alimentação de má qualidade e, principalmente, os humilhantes castigos corporais. Estes haviam sido abolidos no começo do século, acompanhando o final da escravidão, sendo depois reativados pela Marinha como forma de manter a disciplina a bordo. 
 
Ao lado de um dos Marinheiros, João Cândido lê o manifesto da Revolta: fim dos castigos corporais (Agência Estado)
 
No Minas Gerais, por exemplo, no dia da Revolta, o marinheiro Marcelino Menezes é chicoteado como um escravo por oficiais, à frente de toda a tripulação. Segundo jornais da época, recebe 250 chibatadas. Desmaia, mas o castigo continua. O movimento então eclode. João Cândido no primeiro momento não está presente. No calor da luta, são mortos os oficiais presentes no navio, o que terá conseqüências trágicas para os revoltosos.
 
Para surpresa dos oficiais a marujada manobrava sozinha os navios (Foto: "Diários Associados")
 
Além do Minas Gerais, os marinheiros tomam os navios Bahia, São Paulo, Deodoro, Timbira e Tamoio. Hasteiam bandeiras vermelhas e um pavilhão: "Ordem e Liberdade". A frota inclui mais de 80 canhões, que são apontados para a cidade. Alguns tiros de aviso chegam a ser disparados. Os marujos enviam um radiograma, onde apresentam ao governo suas exigências: querem o fim efetivo dos castigos corporais; o perdão por sua ação e que melhorem suas condições de trabalho.
A Marinha quer punir a insubordinação e a morte dos oficiais. O governo, contudo, cede. A ameaça à cidade e ao poder de Hermes da Fonseca são reais. Aprovam-se então medidas que acabam com as chibatadas e também um projeto que anistia os amotinados. Depois de cinco dias, a revolta termina vitoriosa. 
 
A despedida do marinheiro
Os jornais da época anunciam o término da Revolta: quase 3.000 pessoas. Os mais ricos - fugiram da cidade. A população subiu aos morros para ver as manobras da Armada
Os marinheiros, em festa, entregam os navios. O uso da chibata como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil finalmente está extinto.
Logo, no entanto, o governo trai a anistia. Os marinheiros começam a ser perseguidos. Surgem notícias de uma nova revolta, desta vez no quartel da Ilha das Cobras. O governo recebe plenos poderes do Congresso para agir. A ilha é cercada e bombardeada.
Cerca de 100 marinheiros são presos e mandados, nos porões do navio "Satélite" - misturados a ladrões, prostitutas e desocupados recolhidos pela polícia para "limpar" a capital - para trabalhos forçados na Comissão Rondon, ou simplesmente para serem abandonados na Floresta Amazônica. Na lista de seus nomes, entregue ao comandante do "Satélite", alguns estão marcados por uma cruz vermelha. São os que morrerão fuzilados e, depois, serão jogados ao mar.
João Cândido é conduzido para a prisão ("Agência Estado")
 
João Cândido, embora não tenha participado do novo levante, também é preso e enviado para a prisão subterrânea da Ilha das Cobras, na noite de Natal de 1910, com mais 17 companheiros. Os 18 presos foram jogados em uma cela recém-lavada com água e cal. A cela ficava em um túnel subterrâneo, do qual era separada por um portão de ferro. Fechava-a ainda grossa porta de madeira, dotada de minúsculo respiradouro. O comandante do Batalhão Naval, capitão-de-fragata Marques da Rocha, por razões que ninguém sabe ao certo, levou consigo as chaves da cela e foi passar a noite de Natal no Clube Naval, embora residisse na ilha.
A falta de ventilação, a poeira da cal, o calor, a sede começaram a sufocar os presos, cujos gritos chamaram a atenção da guarda na madrugada de Natal. Por falta das chaves, o carcereiro não podia entrar na cela. Marques da Rocha só chegou à ilha às oito horas da manhã. Ao serem abertos os dois portões da solitária, só dois presos sobreviviam, João Cândido e o soldado naval João Avelino. O Natal dos demais fora paixão e morte.
O médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa da morte como sendo "insolação". Marques da Rocha foi absolvido em Conselho de Guerra, promovido a capitão-de mar-e-guerra e recebido em jantar pelo presidente da República.
João Cândido continuou na prisão, às voltas com os fantasmas da noite de terror. O jornalista Edmar Morel (1979, p. 182) registrou assim seu depoimento pessoal: "Depois da retirada dos cadáveres, comecei a ouvir gemidos dos meus companheiros mortos, quando não via os infelizes, em agonia, gritando desesperadamente, rolando pelo chão de barro úmido e envoltos em verdadeiras nuvens da cal. A cena dantesca jamais saiu dos meus olhos.
Atormentado pela lembrança dos companheiros mortos, João Cândido é algum tempo depois internado em um hospício. 
 
Perto do mar, as "pedras pisadas do cais"
Aos poucos, ele se restabelece. É solto e expulso da Marinha. Os navios mercantes não o aceitam: nenhum comandante quer por perto um ex-presidiário, agitador, negro, pobre e talvez doido. João Cândido continuará contudo perto do mar, até morrer, em 1969, aos 89 anos de idade, como simples vendedor de peixe.
Os que fizeram a Revolta da Chibata morreram ou foram presos, desmoralizados e destruídos. Seu líder terminou sem patente militar, sem aposentadoria e semi-ignorado pela História oficial. No entanto, o belíssimo samba "O Mestre-Sala dos Mares", de João Bosco e Aldir Blanc, composto nos anos 70, imortalizou João Cândido e a Revolta da Chibata. Como diz a música, seu monumento estará para sempre "nas pedras pisadas do cais". A mensagem de coragem e liberdade do "Almirante Negro" e seus companheiros resiste.
 
HOMENAGEM DE JOÃO BOSCO E ALDIR BLANC À "REVOLTA DA CHIBATA"
Sobre a censura à música, o compositor Aldir Blanc conta: "Tivemos diversos problemas com a censura. Ouvimos ameaças veladas de que a Marinha não toleraria loas e um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais, etc. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não mutilar o que considerávamos as idéias principais da letra. Minha última ida ao Departamento de Censura, então funcionando no Palácio do Catete, me marcou profundamente. Um sujeito, bancando o durão, (...) mãos na cintura, eu sentado numa cadeira e ele de pé, com a coronha da arma no coldre há uns três centímetros do meu nariz. Aí, um outro, bancando o "bonzinho", disse mais ou menos o seguinte:
  • Vocês não então entendendo... Estão trocando as palavras como revolta, sangue, etc. e não é aí que a coisa tá pegando...
  • Eu, claro, perguntei educadamente se ele poderia me esclarecer melhor. E, como se tivesse levado um "telefone" nos tímpanos, ouvi, estarrecido a resposta, em voz mais baixa, gutural, cheia de mistério, como quem dá uma dica perigosa:
- O problema é essa história de negro, negro, negro..."
 
MÚSICA DE JOÃO BOSCO E ALDIR BLANCI
EM HOMENAGEM A REVOLTA DA CHIBATA 

Mestre-Sala dos Mares", de João Bosco e Aldir Blanc, composto nos anos 70, imortalizou João Cândido e a Revolta da Chibata. Como diz a música, seu monumento estará para sempre "nas pedras pisadas do cais". A mensagem de coragem e liberdade do "Almirante Negro" e seus companheiros resiste.
O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)
(letra original sem censura)
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo
 
O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)
(letra após censura durante ditadura militar)
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo