Os brasileiros assistiram estarrecidos à denúncia contra uma procuradora aposentada que durante mais de um mês torturou uma criança de dois anos que pretendia adotar, em fase de experiência no ambiente do seu futuro lar. As empregadas temiam fazer a denúncia contra “pessoa tão poderosa”. Alguém com consciência de cidadania avisou a polícia e ajudou a gravar os gritos e xingamentos da que pretendia ser a “futura mãe adotiva” e os choros de terror da pequenina torturada.
A polícia protegeu a criança retirando-a do local de tortura e tratando-a médicamente antes de devolver à instituição de onde saira. A população indignada exigiu que a mulher fosse processada pelo crime cometido contra uma criancinha indefesa, um promotor apresentou a denúncia a um juiz que não se sentiu competente para julgar (a antiga colega de classe), mas um segundo juiz ( com consciência de cidadania) julgou e condenou à prisão. Entretanto, com tais delongas e a proteção de alguns colegas da corporação judicial a que pertencia, a criminosa fugiu.A imprensa manteve a população informada dos vários fatos e divulgou a imagem da mulher acusada, acompanhada pelo seu advogada quando chamada à polícia, o que permitiu a mobilização dos que podiam revelar as condições em que foi praticado o crime. O mais importante foi a ação institucional – da polícia e do sistema jurídico (apesar de claudicar) – em defesa da criança sem lar e contra uma antiga alta funcionária do Estado. A prática da democracia criada por um Governo indiscutivelmente a favor do povo, começa a ser implantada apesar das defesas corporativas e de classe. Vemos que com a participação popular será banida a impunidade que até ontem era dominante no Brasil. Podemos acreditar que será possível criar um Estado realmente democrático se não abandonarmos a luta que é permanente.
Revendo os fatos divulgados, no entanto, vemos que há muito por fazer. Não só as empregadas domésticas temiam uma “pessoa tão poderosa”, mas mesmo os responsáveis da instituição de proteção à criança deixaram de investigar a idoneidade de quem pretendia adotar uma criança. Hoje sabe-se que há tempos um menino passou pela mesma experiência de tortura na casa daquela “pessoa poderosa”. Como é que uma instituição do Estado aceita como prova de idoneidade o status sócio-economico de uma pessoa para confiar uma criança de dois anos aos seus cuidados? Porque não perguntou aos vizinhos, aos parentes, aos antigos colegas, se aquela ex-funcionária era confiável? Se ela se afirma como “poderosa” aos seus subalternos, algum problema mental grave deve ser temido.
A falta de consciência de cidadania ainda existe em grande medida, principalmente por persistirem os “poderosos” a defenderem os seus “pares” e não a democracia, mesmo dentro do aparelho do Estado. É uma forma de corrupção silenciosa que sobrevive disfarçado em interpretação jurídica.
Estamos em campanha pela aprovação das “fichas limpas” para os candidatos a qualquer função política, sejam os eleitos como os aprovados em concurso profissional ou indicados. Acrescentemos à limpeza da ficha policial também a consciência de cidadania que é um sério compromisso com a democracia.