segunda-feira, 22 de março de 2010

O Socialismo na e para a Bolívia: da eleição de Evo à nova ordem


Ninguém duvidava do triunfo de Evo Morales. Todos sabiam que venceria com mais de 50% dos votos, mas poucos acertaram na percentagem final. Conseguir 64%, é alcançar um cume pouco habitual. No entanto, ratifica o fato de que onde há unidade das massas pode-se atingir índices que se aproximam de uma espécie de unanimidade política. Para a outra banda – para a direita e o imperialismo – o êxito da candidatura popular foi uma humilhação nunca vista.

Por Marcos Domich, em odiario.info

O triunfo permitiu chegar ao controle de importantes alavancas do poder político, particularmente em ambas as câmaras legislativas. Isto possibilita a aprovação das leis e códigos, e a nomeação de autoridades que facilitarão uma aplicação sistemática e efetiva da nova Constituição Política do Estado (NCPE). Deu-se uma situação sui generis, agora é possível fazer profundas transformações estruturais e super-estruturais pelo mandato da Constituição e das leis.

Anteriormente, a revolução, o povo em armas ou o que lhe queiram chamar, executavam medidas revolucionárias sem outra deliberação para além da lubrificada vontade popular. E se aí radicava a sua legitimidade, havia o melindre de não serem 'legais', mais ainda, estraçalhavam a velha legalidade que outra coisa não era que a lei formulada, como obra de alfaiate, exatamente à medida dos interesses dos patrões e dos monopólios. Hoje é possível a mudança legítima e completamente legal. Na verdade consumou-se uma revolução política pacífica e que até tem a sua própria Constituição.

As eleições bolivianas têm uma dupla projeção: uma exterior e outra interior. Isso entende-se melhor se falarmos de alguns prolegômenos das eleições. A eminência do êxito da candidatura de Evo determinou que a reação nativa e o imperialismo espremessem os cérebros a imaginar as maneiras de perturbar o processo eleitoral; como se disse, deram mil e uma voltas na tentativa de a invalidar.

A experiência histórica diz-nos como se move uma direita em transe de sofrer uma derrota que, no caso das eleições bolivianas de dezembro, marcam para ela e para os seus sustentáculos a possibilidade de uma derrota estratégica. Derrota estratégica quer dizer que o processo de mudanças continuará a sua marcha ascendente que inclusive poderá transformar-se num processo revolucionário, com tudo o que esta definição significa. E aqui está o cerne da questão. Às classes dominantes apavora-as a possibilidade da sua extinção histórica.

Entre as medidas perturbadoras estava a tentativa de impedir o voto de cerca de 400.000 cidadãos. Depois tentaram invalidar cerca de 250.000 votos presumivelmente a favor do MAS, de acordo com sondagens confiáveis. Outro objetivo era o de impedir que o futuro Parlamento boliviano contasse com uma maioria de deputados e senadores do MAS, sobretudo na câmara de senadores.

O seu sonho esfumou-se e a direita elegeu apenas 10 senadores face aos 26 dos MAS. Percebe-se agora a consigna do voto cruzado. Queriam forçar a diminuição de deputados da bancada do MAS. No final, este partido obteve 86 deputados contra 36 do seu imediato seguidor.

A campanha da oposição baseava-se numa ação dissuasora, mentirosa e provocadora, utilizando a poderosa bateria de meios de comunicação de massas ao seu serviço. Todos tocavam pela mesma partitura. O efeito que procurava era deteriorar a imagem dos candidatos oficiais, da esquerda, atribuir-lhe as piores intenções.

Chegou-se a tergiversações impossíveis como no caso do comando mercenário dirigido por Rósza Flores. Apesar de estar há muito referenciado, inclusivamente denunciado perante a ONU, de ser encontrado com explosivos na sua própria casa em Budapeste, pretendiam apresentá-lo como um contratado, um agente do governo de Morales.

A dimensão externa é a projeção do êxito do povo boliviano na América Latina. Com o retumbante triunfo de Evo Morales, a chamado 'volta à esquerda' continua e pesará nas próximas eleições e ações políticas e diplomáticas. José Mujica, da Frente Ampla uruguaia, derrotou inapelavelmente o direitista branco La Calle.

O caso do Chile é diferente e exige uma profunda reflexão. Trata-se claramente de uma falta de unidade das forças de esquerda e chama a atenção atitudes como a do ex-deputado da Concertação, Enriquez-Ominami.

Face à sucessão de vitórias das candidaturas democratas, progressistas e de esquerda, há já uma década, o imperialismo continuará a procurar por todos os meios - incluindo os mais ilícitos – travá-la e impedir a passagem a novos escalões. Para os seus objetivos, é uma contradição que em cada nova eleição prossiga o êxito do progressismo sobre o conservadorismo, da esquerda sobre a direita.
Há provas do que o imperialismo pretende, e Honduras é o exemplo mais claro. Há mais países em que chovem as denúncias de maquinações conspirativas do império: Venezuela, Equador, Nicarágua, Argentina e outros estão debaixo de mira. Até as catástrofes naturais como a do Haiti são pretextos para ensaiar ocupações militares. Obviamente, os governos servis tipo Uribe e as suas sete bases concedidas ao Pentágono são peças importantes da tramóia contra-revolucionária do imperialismo.

Mas, no conjunto, há uma circunstância que se levanta contra os planos imperialistas: em Cancún nasceu um novo agrupamento dos países da América Latina e do Caribe, a Comunidade de Estados da América Latina e do Caribe. O imperialismo não vê com bons olhos a emergência de uma nova organização inter-estatal e integracionista de que não fazem parte nem os EUA nem o Canadá. Os povos, os governos progressistas, devem desenvolver os maiores esforços para que esta obra de unidade, de integração e de soberania atinja o seu ponto mais alto.

Com este panorama, devem fixar-se algumas premissas que balizem a atividade da esquerda, da ampla representação parlamentar sob a sigla do MAS e até do próprio governo. Em primeiro lugar, impõe-se uma atitude da máxima responsabilidade e coerência política, de uma consciência precisa das tarefas, do rumo e das metas que há que atingir no processo de construção de uma nova sociedade.

Ainda que escassa, do mal o menos, haverá uma representação parlamentar totalmente confiável pela sua firmeza política e ideológica, pela sua formação e compromisso com a causa da libertação nacional e social na perspectiva da superação do capitalismo.

Não será uma atitude arrogante ou de satisfação plena pelo rotundo triunfo de dezembro e dos que já se avizinham para abril. A direita, que perdeu possibilidades no campo da confrontação democrática, voltará ao caminho anterior e cada vez com mais fúria, fruto da sua impotência política. Com a facilidade que lhe conhecemos, há que temer a sua passagem ao terreno do complô, da resistência organizada e da assunção da violência social, inclusive do terrorismo.

Também se deve pensar que a reação, e sobretudo esse amplo diapasão social chamado conservadorismo, tem outras formas de ação na base dos elementos de atraso e da contaminação da reversão sobre a consciência social. O mês de fevereiro caracterizou-se pela subida dos preços do açúcar, da carne de frango e outros. Certos setores como os transportes provocaram sérios problemas com greves que não têm qualquer fundamento.

Noutros setores há reivindicações de tipo anárquico e nocivo que, contudo, se podem combater e controlar. Por fim, as medidas oportunas do governo resolveram os transtornos, mas ainda não há uma organização vigilante do povo, das organizações sociais, dos sindicatos e dos partidos de esquerda. Até agora houve uma espécie de convergência, não propriamente acordada, entre as organizações e os setores referidos. Do que se trata agora é converter a convergência em organização dotada de objetivos, programa e estruturas definidas. A consigna da unidade continua a ser a mais importante desta etapa histórica.

Ainda que de forma não calculada nos seus detalhes, emergiu de forma espontânea o bloco histórico capaz de levar por diante a sua tarefa histórica da construção da nova sociedade. Camponeses e camponesas, operários e operárias, povos originários, camadas médias, intelectualidade avançada e até pequeno empresariado constituem a matéria-prima desse bloco a que há que infundir consciência revolucionária.

No bloco histórico, ainda se deve trabalhar muito, e muito arduamente, pela unidade política e pelo esclarecimento ideológico. Tarefa que não é fácil quando se trata de vários componentes de classe e de diversidade de povos que, até agora, não só eram marginalizados e discriminados, como em boa medida eram invisibilizados.

Por outro lado não se pode esquecer e passar por alto sobre as manifestações que priorizam o étnico nacional como a pedra fundamental da nova construção social e até adquirem uma matriz excluente que não estabelece diferenças no seio do outro pólo. Tende-se a ignorar que para o capitalismo não há muralhas da China e ele penetrou em todos os resquícios da sociedade e dos povos.

Por último, nesta formulação de tarefas de conteúdo ideológico, não se pode omitir que só a superação das tendências 'naturais' do interesse privado, do seu crescimento e expansão, impedirá que, mais à frente, se convertam num obstáculo à universalização e resgate do verdadeiro sentimento coletivo, solidário, igualitário ou simplesmente comunitário, se se preferir.

À luz da análise da atual situação boliviana podem inferir-se várias conclusões que se traduzirão de fato em linhas de ação e tarefas a derem executadas neste período. Em primeiro lugar há que procurar a maneira de cumprir uma série de promessas eleitorais que não têm esse sentido, mas que na realidade são verdadeiras medidas programáticas transcendentais.

Entre outras está a industrialização do país, com um novo sentido social. Perseguem o fim preciso de desenvolver as forças produtivas em todos os seus componentes, o conjunto dos produtores, da classe operária e dos instrumentos de produção.

Na agricultura – além de estimular certos caminhos imprescindíveis para a alimentação da população e as necessidades de exportação – está a tarefa de liquidar o latifúndio e libertar as forças produtivas superando o despojo mais que centenário dos povos originários.

Há outros aspectos que fazem parte do processo de mudanças que poderão, finalmente, ser aplicados depois do apoio popular ter ratificado o governo. A NCPE tem inscritas e legalizadas por referendo popular uma série de disposições constitutivas de um verdadeiro salto qualitativo no plano da politica social, da educação e da saúde, que tornem a Bolívia num Estado avançado e moderno.

Isto sucede, igualmente, no que se estabelece a nossa política externa como soberana, pacifista, solidária e de relações com todos os países do mundo, baseadas no respeito recíproco, na não ingerência nos assuntos internos de cada país e no benefício mútuo e na solidariedade com os povos em luta pela sua emancipação e defesa da sua soberania. Este é o novo caráter da nossa inserção na comunidade internacional.

Um momento muito importante é o conjunto de disposições que, mantendo o caráter unitário do Estado plurinacional e republicano, estabelece o regime das autonomias departamentais, regionais, municipais e de povos originários. Este novo ordenamento terá de ser aplicado procurando evitar as possíveis fricções entre os fatores concorrentes. Será uma prova à imaginação e criatividade e sobretudo ao patriotismo dos bolivianos que privilegiarão o interesse nacional aos interesses regional ou particular.

Não é objetivo destas notas referir todos os aspectos do plano de desenvolvimento para refundar o país e efetuar uma verdadeira revolução que, libertando a dependência, democratizando a sua sociedade, aceitando e promovendo a unidade na diversidade, conduza à construção de uma nova ordem social. Foi precisamente isto que pôs na mesa de trabalho e no debate teórico o binómio presidencial do discurso de tomada de posse de 22 de Janeiro, para o novo mandato de 5 anos.

O presidente Morales, sob diversos ângulos, afirmou a caducidade do sistema capitalista e o imperativo da construção do socialismo. E de imediato surgiu a pergunta legítima: Como será o socialismo na Bolívia?

Será o socialismo real, o do século XXI, o autogestionário iugoslavo, o modelo chinês, vietnamita ou cubano? Ou será, por fim, o socialismo comunitário? Como o definiram teóricos e analistas políticos bolivianos? A nosso ver a procura de aposições, de adjetivos, é irrelevante para o objetivo final.

Desvia a atenção dos temas centrais, das essências e do caráter dos fenômenos. O vice-presidente Garcia Linera disse, em algum momento das suas intervenções, 'não importa como se chama (o socialismo), o que importa é em que consistirá'. Estamos de acordo e abordemos como entendemos o conteúdo, a essência desse socialismo.

Fique claro que não partimos do vazio teórico, de uma espécie de vacuumdoutrinal. A nossa concepção de socialismo, confessamo-lo à partida, não é nenhuma fórmula nova nem um invento. Ela parte da concepção de Marx, de Engels e de Lenine de uma forma, digamos assim, radical, se isto significa que partimos dos clássicos e desenvolvemos a aplicação da teoria do socialismo científico na Bolívia e para a Bolívia de agora.

Recorremos a uma citação que nos ajuda a aclarar o nosso ponto de partida: 'No materialismo histórico há que continuar a inspirar-se também no que diz respeito à análise de outras revoluções que, a partir do outubro bolchevique, mudaram o rosto do mundo. Não se trata de uma vivência já encerrada e referida ao passado. Junto dos anticomunistas profissionais e de todos os comunistas ou ex-comunistas que são presa da autofobia, há ainda partidos e países que se consideram empenhados nos projetos de construção de uma sociedade para além do capitalismo'. (Losurdo, Doménico, Fuga da História, p. 60; ed. Cartago, 2007.)

Geralmente, fala-se da Revolução como de um processo único. Na realidade tem duas fases. A primeira é a revolução política que, em síntese, consiste na mudança das classes no poder central de um Estado ou de um país. As classes revolucionárias – operárias, camponesas e outras – substituem as classes dominantes e possuidoras, a oligarquia, a burguesia, etc..

Esta fase, muito dinâmica, é variável no seu prolongamento. Nuns, casos a deslocação do velho poder político é rápida, Nalguns casos, mais prolongada, em função de numerosos fatores que têm a ver sobretudo com as correlações de forças, nacionais e internacionais, da força, do empenho dos pólos da contradição.

Depois vem e por vezes corre paralela – sobretudo nalguns aspectos – a fase da revolução propriamente social. Esta aponta para a transformação, a mudança da base econômica da sociedade, do modo de produção e do que habitualmente se conhece como a estrutura econômica.

Adiantando-nos um pouco, podemos dizer que a fase política muda, transforma, sobretudo a super-estrutura e o ordenamento jurídico e político que se levanta sobre a estrutura e que responde aos interesses das classes dominantes. Demora muito mais transformar a consciência social, sobretudo aquele extrato que se denomina consciência cotidiana ou habitual. Por isso se fala tanto da super-vivência do passado, da conduta e do modo de atuar e pensar das pessoas que se supõe já não deveriam continuar a ser como são.

Em que consiste a mudança da estrutura, do modo de produção; a revolução social propriamente dita? Esquematicamente, vamos considerar três elementos que consideramos fundamentais: o sistema de propriedade dos meios de produção, as relações sociais de produção que resultam sobretudo da anterior e o modo de distribuição da riqueza social.

O primeiro elemento é o determinante dos outros componentes e acabará refletindo-se até em elementos tão etéreos como a psicologia das pessoas e a vida espiritual de uma sociedade. Da forma das relações de produção. Na sua forma estabelece a modalidade com que o proprietário dos meios de produção compra, ou mais exatamente ainda, como se apropria do trabalho do que vem a ser o 'seu' dependente, o seu assalariado ou o seu peão.

Estas relações de produção são as que encarnam a contradição entre o possuidor e o despossuído e, mais cedo que tarde, revelar-se-ão como luta de classes.

Finalmente, conforme seja a base econômica, os membros de uma sociedade recolhem a riqueza social (podemos dizer 'apropriam-se', particularmente do excedente). Marx comparava a riqueza social com uma grande panela na qual os indivíduos, obrigatoriamente membros de uma classe social, extraíam da panela uma parte dessa riqueza, de acordo com o tamanho da sua colher. Ínfima, minúscula, a dos operários e da pobreza em geral e enorme, extraordinariamente grande, a do burguês. Aí esta com simplicidade em que consiste a injustiça social.

Não pode haver socialismo de nenhuma classe se não se transforma essa base econômica. Para falar da construção do socialismo com propriedade deve colocar-se a meta histórica da liquidação da propriedade privada dos meios de produção. Isto não acontece da noite para o dia nem significa o desaparecimento de toda a forma de propriedade; mesmo no socialismo integral, o comunismo, não desaparece a propriedade pessoal, ainda que a propriedade dos meios de produção, a propriedade social, seja universal e completa.

No segundo elemento, muda totalmente o caráter das relações de produção. O operário, o trabalhador, o produtor dos bens materiais emancipou-se e vai superando o seu estado de alienação, o estado de dependência de outra vontade e do estado de separação, de perda de si mesmo e do fruto do seu trabalho.

Por último, num processo que não é imediato, irá se nivelando a distribuição da riqueza social. O excedente se tornará cada vez mais coletivo. Por outras palavras, terá aumentado de tamanho a colher dos trabalhadores e dos pobres. Haverá mais justiça social e irá se estabelecendo essa fórmula da primeira etapa do socialismo 'de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho'. Na terminologia em voga na Bolívia se tornará realidade a aspiração do 'sumaj causay', quechua, do 'sumaj k’amaña', aymara, do 'vivir bien', castiço.

Concluímos dizendo que só uma revolução social completa pode acercar-nos desse ideal, de forma nenhuma uma utopia como era moda dizer há alguns anos. E nenhuma das suas fases pode ser separada da outra. Uma revolução, somente política pode facilmente ser revertida, sobretudo se deixou intacta a base ou se se deixarem intocáveis muitas formas de propriedade privada dos meios de produção. E não haverá nenhuma revolução social, nenhuma mudança estrutural se não se tender para a liquidação da alienação do trabalhador.

Por último, em duas palavras, respondemos à premente pergunta de se é possível, hoje e na Bolívia, um país atrasado, pobre, cercado construir uma nova ordem, a sociedade socialista. Sim, acreditamos que é possível nas atuais conjunturas nacional e internacional.

Ambas são favoráveis, ainda que à revolução boliviana, tal como não acontecerá com nenhuma outra, não lhe será aberta a passagem para uma avenida Nevski, como já sabemos. Será como disse Mariátegui 'nem cópia nem decalque, criação heróica'.

* Marcos Domich, Professor da Universidade de La Paz